domingo, maio 21, 2006

a ilusão de nos julgarmos donos das coisas, dos instantes e dos outros

(…)
Não vês o terror com que espio as outras mulheres aproximarem-se de ti. Não dormes comigo à noite quando eu volto e torno a voltar na cama, buscando um sono que te apague de mim, que afaste as perguntas que então me devoram: «Onde estará ele agora? Estará sozinho em casa, sofrendo por minha causa? Estará acompanhado, dando a outra mulher o que eu já não tenho dele? Como fará ele amor com outra mulher? Como o pode?»
Como farás amor, meu amor?

E que sabes tu do meu sono? Que imaginas tu das minhas noites? Saberás tu que as mais felizes são aquelas em que chego à cama e adormeço, sem sequer me lembrar de ti nem querer, como na música da Simone: «eu não me lembro, nem esqueço – adormeço».

Tu não entendes, mas eu preciso da tua força para sobreviver.

Quero-te vivo e igual a ti, como sempre te vi e te amei, para sentir-te ao meu lado para sempre, por maior que seja a distância física que criámos…

Sei que se me pudesses ouvir me chamarias egoísta e dirias que, como sempre, é só a minha vontade que conta. Estou sempre a falar contigo, mas tu não me ouves. Eu, porém, ouço-te sem que tu fales e quando falas, adivinho o contrário do que dizes.

Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém.
(…)


in “Não te deixarei morrer, David Crockett” de Miguel Sousa Tavares