quarta-feira, março 07, 2007

aquilo que vai cá dentro, em palavras emprestadas de Miguel Torga

Guerra Civil
É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
E que pede castigo
E desespera a lança no meu braço
Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou
Infeliz com loucura e sem loucura,
Peco à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino

Livro de Horas

Aqui diante de mim,
eu, pecador,
me confesso de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou.
Me confesso possesso das virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete que são mais.
Me confesso o dono das minhas horas
O dos facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças do mesmo todo.
Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui, diante de mim!

Prospecção

Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna de me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.

Sísifo
Recomeça....
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...
Confiança
O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...

Transfiguração
Tens agora outro rosto, outra beleza:
Um rosto que é preciso imaginar,
E uma beleza mais furtiva ainda...
Assim te modelaram caprichosas,
Mãos irreais que tornam irreal
O barro que nos foge da retina.
Barro que em ti passou de luz carnal
A bruma feminina...
Mas nesse novo encanto
Te conjuro
Que permaneças.
Distante e preservada na distância.
Olímpica recusa, disfarçada
De terrena promessa
Feita aos olhos tentados e descrentes.
Nenhum mito regressa....
Todas as deusas são mulheres ausentes...