Hora absoluta
Há emoções tão excessivas,
Que sentidas num só minuto,
Numa só hora,
São um exagero.
São um desespero.
Deviam sentir-se as emoções
De forma mais comedida,
Ser vividas em prestações, divididas em poções
E tomadas ao longo do dia,
Com conta, peso e medida,
Como tomamos as refeições.
A tristeza dividida por horas
Seria tolerável, suportável.
Mas senti-la assim desta forma imensa,
Concentrada numa hora, num minuto,
É um sentir tão excessivo,
Tão absoluto,
Que me atropela,
Me extravasa,
E me derruba.
Pó
Ah… Esta vontade de um silêncio que não consigo,
De uma paz que me foge entre os dedos e não alcanço,
De um esquecimento e alheamento que persigo.
Ah… Esta vontade de nada ser!
Nem sequer gente!
De ser invisível, indistinta, transparente,
E fechar-me dentro,
E ser ausência,
E ficar tão só…
Que até de mim a minha sombra se esqueça,
Que à minha passagem nem uma folha se agite,
Nem uma marca fique!
Ah… Esta vontade de me dissolver no vento,
De ser terra,
E ser pó.
Rotina
A angústia cola-se ao corpo
Como se fosse pele.
E o corpo torna-se errante,
Erróneo e estrangeiro.
As horas arrastam-se,
E o tempo é certeza
Que vivendo o dia,
Não o vivi inteiro.
Há a vontade da partida,
De despir a angústia,
De abandonar o corpo.
(…) Alguém que não eu
Há alguém dentro de mim que não eu.
Esse alguém tem garras,
Dentes afiados,
Grita para ser ouvido.
Não tem medo de levar na cara,
Vai à luta,
Finca os pés no chão
E não desiste.
Há alguém dentro de mim,
Que não eu,
Que me ultrapassa.
Maquilhagem
Colo um sorriso,
Acendo um brilho nos olhos,
Mascaro as olheiras,
Refaço a pintura
Que a dor liquefeita danificou.
E sou eu de novo…
O segredo para se ser grande
Está todo na maquilhagem.
in Bestiário, Alain Corbel (desenhos) & Encandescente (poemas), edições Polvo, 2007